Um dado preocupante: o número real de assassinatos
no Brasil é bem maior que o número oficial. Segundo uma pesquisa que o
Fantástico apresenta com exclusividade, cerca 8,6 mil homicídios cometidos
todos os anos no país não entram nas estatísticas. Mais de 50 mil pessoas
são assassinadas por ano no Brasil. Cada caso vira uma declaração de óbito. Um
inquérito policial. Entra para estatísticas de violência. É destaque nos
jornais. Ganha um número que vai parar nos gabinetes dos governantes.
Por trás desses números, um rosto, um nome, uma
história. Pamela tinha acabado de se tornar mãe. Itamara, filha única. E John
ainda estava em lua de mel. Os três foram assassinados, mas nenhum deles entrou
para as estatísticas de homicídios do país. Agosto de 2009. Pamela, que
morava em São José dos Campos, tinha ido a uma festa. Ela e as amigas
voltavam de carona para casa. "Deu 7 horas da manhã, minha filha caçula
Michele bate na porta do quarto: ‘mãe, vem que a Pamela levou um tiro no
braço’”, lembra Manaceia Barreto, mãe da Pamela.
O carro onde Pamela estava tinha passado por um
bloqueio policial. Sem habilitação, o motorista resolveu acelerar. "Daí a
polícia achou que eles estavam fugindo, né? E atirou no carro”, conta Michelle
Barreto, irmã da Pamela.
"Era muito desespero. A gente começou a se abaixar
dentro do carro. Quando virou a esquina que a Pamela falou: ‘Acho que eles me
acertaram’. Ai que o menino parou o carro”, diz uma menina.
Na declaração de óbito, a causa da morte de
Pamela não ficou clara. O documento diz apenas que ela foi vítima de arma de
fogo. Por isso, o caso é um dos milhares que não aparecem como homicídio no
levantamento oficial feito pelo Ministério da Saúde.
De 1996 a 2010, quase 130 mil homicídios no Brasil
não entraram nas estatísticas de mortes violentas. Isso é quase a população de
Copacabana, um dos maiores bairros do Rio de Janeiro. É como se as pessoas que
moram lá, num espaço de 15 anos, desaparecessem pra sempre sem que ninguém se
desse conta.
Quem fez essa descoberta foi o pesquisador Daniel
Cerqueira, do IPEA, Instituto de Pesquisas Aplicadas, do governo federal.
Chamaram a atenção dele os índices de mortes por
causas indeterminadas que aparecem no Datasus, a estatística criada pelo
Ministério da Saúde.
"Nós verificamos que, nos últimos 15 anos, cerca de
175 mil pessoas no Brasil foram mortas de forma violenta e o estado não
conseguiu dizer qual foi a causa. A gente queria então investigar, entender
porque essas pessoas morreram”, conta Daniel Cerqueira.
Ele cruzou dados e pesquisou caso a caso. "A
conclusão é que 74% dessas mortes violentas indeterminadas se tratavam, na
verdade, de homicídios. Ou seja: o que nós estamos dizendo é que a taxa de
homicídios no Brasil é cerca de 18,6% maior do que aquela registrada
oficialmente hoje”, explica Daniel.
Isso significa que as estatísticas de homicídios
deixam de registrar 8,6 mil assassinatos por ano.
Com as informações do IPEA, o Fantástico viajou
pelo Brasil buscando endereços de famílias que perderam parentes por causas
indeterminadas.
Em São Gonçalo do Amarante, no Rio Grande do Norte,
a família de Dona Gorete ainda procura entender por que o filho foi
assassinado, em 2010, quando tentava fazer o bem.
"Quando eu chego em casa, minha nora diz: ‘John foi
apartar uma briga e deram um tiro nele’. Eu sai por aqui correndo, cheguei no
hospital. Quando eu cheguei, a rua já tava cheia de gente. Quando eu me
topei com meu marido chorando”, conta Dona Gorete.
John tinha 29 anos. "Ficamos a noite toda
esperando o corpo dele ser liberado”, lembra Gorete.
Na delegacia, o caso foi investigado como
homicídio. Os responsáveis pela coleta de dados na Secretaria da Saúde
incluíram o caso na lista de mortes por causas ignoradas.
Para o pesquisador Daniel Cerqueira, o problema é
provocado pela falta de comunicação entre a polícia e as secretarias de saúde
que alimentam o banco de dados do governo federal.
"Os bancos de dados da polícia estarem conectados
com o banco de dados do IML, conectado com o banco de dados da Secretaria de
Saúde. Eu acho que a gente conseguiria dar mais agilidade a esse processo”,
afirma Daniel Cerqueira.
Em nota, o Ministério da Saúde apenas informou que
está investindo na melhora do sistema de notificação, coleta e análise de
dados. E informou ainda que de 2000 a 2011 o número de mortes por causas
indeterminadas caiu de 10 para 7%.
O Ministério da Justiça, maior interessado por
esses dados, reconhece que há falhas no sistema que alimenta as estatísticas da
violência.
"Os dados do Ministério da Saúde, eles são
excelentes para desenvolver política para a saúde. Mas para a segurança pública
eles são tardios e às vezes equivocados”, afirma Regina Miki, secretária
Nacional de Segurança Pública.
E por causa desses equívocos são muitos os
prejuízos para o país, dizem os pesquisadores.
"A gente não tem esta cultura de fazer política
avaliando com o que funciona ou não funciona. Faz política a base de alguma boa
idéia na cabeça de algum iluminado. No Brasil é tudo feito na base do
‘achismo’”, ressalta Daniel Cerqueira.
A Secretária Nacional de Segurança Pública diz que
o governo federal tem um projeto para implantar um sistema de informação
mais confiável.
"Ele vai possibilitar o cruzamento de dados para
que possamos verificar se aquelas causas externas apontadas no Sistema Único de
Saúde são realmente os homicídios encontrados na segurança pública”, explica
Regina Miki.
Em Feira de Santana, maior cidade do interior da
Bahia, o Fantástico descobriu outro caso de homicídio escondido entre as mortes
por causas desconhecidas.
Itamara, de 19 anos, era a única filha de Dona
Ilda. Em 2009, se envolveu num triângulo amoroso com um motorista de
caminhão e outra mulher.
Era fim de tarde e Itamara brincava com o filho de
2 anos na porta da igreja. Uma mulher que se dizia namorada do caminhoneiro
chegou, conversou com ela, puxou uma pistola da bolsa e atirou duas vezes na
cabeça de itamara.
"Aí eu pulei em cima dela, sacudi, sacudi, gritava.
Mas não teve jeito”, conta Dona Ilda.
De acordo com a pesquisa do IPEA, sete estados
lideram o chamado ranking de homicídios escondidos. O levantamento é
resultado da média de assassinatos ocultos entre 2007 e 2010 para cada 100 mil
habitantes.
No Rio de Janeiro, a taxa é 16,2. Na Bahia,
10,9. 7,7 no Rio Grande do Norte. 5 em Pernambuco. 4,2 em Roraima. 4,1 em Minas
Gerais. E 4,1 também em São Paulo.
Em São José dos Campos, no interior de São Paulo, a
mãe de Pamela batalha para que os dois policiais que atiraram em sua filha
sejam incriminados.
"A polícia alega que um dos passageiros virou a mão
e teria atirado em direção à PM. E aí os policiais, em legítima defesa,
atiraram em direção ao veículo”, afirma Tais Silva Travelo, advogada da família
de Pamela.
"A policia forjou a arma. não tinha arma no carro”,
diz a irmã de Pamela.
"O passageiro não atirou e a arma que eles falam
que é dele não houve disparo. a princípio, não tem como acreditar na legítima
defesa. Isso está documentado nos autos”, explica Tais Silva.
Depois de ouvir os policiais na audiência, o
promotor encaminhou seu parecer sobre o caso à juíza. Ele pediu a absolvição
dos acusados.
Fantástico: O senhor está convencido que eles atiraram
em legítima defesa?
Fabio Xavier Moraes, promotor: Convencido.
Fantástico: Os exames técnicos não comprovaram que
um tiro foi disparado de dentro do carro...
Fabio Xavier Moraes: Mas dentro de uma situação de
perseguição pode ter ocorrido algum som que tenha efetivamente dado a impressão
de disparo de arma de fogo.
"Isso não é justo. Isso é humilhante”, diz
Manaceia, mãe de Pamela.
O Fantástico procurou os policiais. Mas eles e seus
advogados se recusaram a dar entrevista.
Em Feira de Santana, a polícia concluiu o inquérito
que investigou a morte da empregada doméstica Itamara de Carvalho. A acusada,
Joseane Santana, confessou o crime. O Ministério Público pediu a prisão
preventiva de Joseane Santana em junho de 2009. Seis meses depois do assassinato.
O processo está na Vara do Júri, no Fórum de Feira de Santana. Quatro anos se
passaram e a Justiça ainda não se manifestou.
"Eu tenho esperança que ela vai pagar tudo o que
ela fez”, diz a mãe de Itamara.
Em São Gonçalo do Amarante, o inquérito da morte do
funcionário público John agora voltou a andar. Uma ordem de prisão preventiva
do assassino foi dada em fevereiro de 2012.
Na delegacia da cidade, a ordem só chegou em 1º de
julho passado, quase um ano e meio depois. Pode até ser apenas uma
coincidência, mas isso aconteceu dois dias depois que a equipe do Fantástico
chegou para contar essa história.
O pedido de prisão estava encalhado na Vara
Criminal do Fórum da cidade.
"O que posso explicar, entender, é que tinham
diversas outros atos a serem cumpridos no processo e isso acabou passando
desapercebido”, explica Rosane Cristina Moreno, promotora.
No mesmo dia em que a ordem de prisão chegou à
delegacia, Pedro Augusto da Silva, acusado de ter matado John, foi preso.
Fantástico: Você faria aquilo novamente?
Pedro Augusto Barbosa: Não.
Dona Gorete, mãe de John: Gostaria que fizesse
justiça, eu sei que não traz meu filho de volta, mas que ele pagasse por este
crime.
Fantástico: Ele está preso, Dona Gorete.
Dona Gorete: Tá preso? Três anos. Né? Dia 20 faz três anos. A Justiça foi feita
A morte de John está esclarecida, mas vai continuar
fora das estatísticas oficiais de homicídios.
Fantástico: A senhora não se incomoda com
isso?
Dona Gorete: Não, não me incomodo. Eu gostaria mesmo é que meu filho nunca
estivesse nesta lista, na verdade. Em lista nenhuma.
Pode até não fazer diferença para Dona Gorete. Mas
pesquisadores alertam: esses dados são muito importantes.
"Saber onde acontece o crime. Quem são as vítimas e
quem são os autores ajuda a gente a focar e, de alguma forma, trabalhar e
investir melhor pra que isso não volte a acontecer. E se previna a violência”,
destaca Renato Sérgio de Lima, sociólogo.
Estatísticas transparentes e corretas ajudam a
impedir que histórias, como as mostradas no Fantástico, continuem acontecendo
no Brasil.
"Não só por questão de direitos civis, que a
família tem o direito de saber porque o seu ente querido morreu, mas porque
aquela informação é importante sob o ponto de vista das políticas públicas para
tentar evitar uma morte futura”, explica Daniel Cerqueira. Fonte: Voz da Bahia |